No dia 30 de abril de 2019, a Medida Provisória nº 881 modificou substancialmente o artigo 50 do Código Civil, que versa sobre a desconsideração da personalidade jurídica. A MP foi consolidada, e, no dia 20/09/2019, se tornou a Lei nº 13874/19 (Lei da Liberdade Econômica). Como justificativa, os elaboradores da medida, relataram que se trataria de positivação da jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores, de forma que, os pequenos e médios empresários que não possuíam a capacidade financeira de fazer tais recursos, agora teriam a aplicação desses entendimentos amparados por lei. Tal argumento é parcialmente verdadeiro, pois, conforme veremos, nem todas as mudanças eram consolidadas na jurisprudência dos Tribunais Superiores.
No tocante à modificação, a primeira coisa que se observa é que o artigo além de ganhar extensão pelos novos cinco parágrafos, teve seu caput ampliado. Elemento pelo qual começa-se a análise.
1. Caput: o novo critério de benefício do sócio ou administrador
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso (grifos nossos).
Afora pequena mudança na escrita, a alteração foi a criação de um novo critério para que os efeitos da desconsideração atinjam efetivamente os sócios ou administradores da pessoa jurídica, a saber, o benefício direto ou indireto destes. Faz isso acrescentando ao final do caput o seguinte trecho: “[…] beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”. De todas as mudanças apresentadas pela MP, a inclusão desse critério é certamente a mais inovadora. Isso porque trata-se de uma mudança substancial na caracterização do instituto, que surtiam efeitos pela mera observação da existência do desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Tal critério não era consolidado na doutrina e jurisprudência, apesar da existência de alguns defensores e alguns precedentes judiciais (ver RESP 279.273 – SP).
Ao que parece, o legislador, ao eleger esse novo critério, buscava coibir os abusos da utilização do instituto. Em muitos casos, a desconsideração era utilizada como forma de agravar as execuções que restavam frustradas pela barreira da autonomia patrimonial das sociedades, casos em que se utilizava genericamente os conceitos, então abertos, de desvio de finalidade e confusão patrimonial. Tal preocupação também se mostra ao não permitir a desconsideração pela mera existência de grupo econômico (§ 4º) ou a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica (§ 5º).
Uma questão que a nova concepção da desconsideração pode trazer – em específico no tocante à modificação do caput – é o entendimento que sócios minoritários sem poder de decisão e que sequer foram beneficiados pelo ato abusivo também devem ser atingidos pela desconsideração da personalidade jurídica. Nesse sentido, foi entendimento do STJ, no ano de 2016:
Bem diferente é o que ocorre com a desconsideração da personalidade jurídica. Aqui não há diferenciação dos sócios. Todos respondem indistintamente pela obrigação da empresa.
Ocorrendo abuso da personalidade jurídica, determina-se sua desconsideração para, dessa forma, alcançar o patrimônio dos sócios que, por via transversa, gerou prejuízos a terceiros. Contudo, nesse processo de desconsideração não se realiza a ponderação de quem ocasionou o dano, sendo irrelevante determinar se a conduta foi praticada por meio dos atos dos gerentes e administradores ou de outro sócio específico. Todos aqui responderão pelo ato danoso.
Nessa toada, não pode o sócio minoritário, para se eximir dessa responsabilidade, alegar desconhecimento dos fatos abusivos praticados pela empresa. Mesmo tendo pequena parcela de quotas, é dever de cada sócio gerir as atividades e os negócios realizados pela sociedade (STJ, REsp 1250582 MG; grifo nosso).
A nova configuração do art. 50 não impõe a responsabilização apenas dos administradores ou responsáveis pelo ato, mas ao eleger o critério de benefício direto ou indireto do sócio ou administrador acaba abrindo a possibilidade de limitação da desconsideração para apenas determinados sócios, que se beneficiaram com o ato abusivo.
Em contraposição, há argumentos que trazem a dificuldade de prova desse novo critério na prática e sugerem a inversão do ônus probatório neste caso, como sustentaram Luciana Goulart Penteado e Denny Militello em artigo para o Estadão:
O credor normalmente está em meio a um ambiente de escassez de provas, pois as disputas judiciais envolvem questões particulares da relação entre a sociedade e os sócios ou administradores, o que prejudica a comprovação do benefício. A jurisprudência exercerá um papel relevante, pois terá que definir se entende que tais provas serão de difícil produção ao credor, para então inverter o ônus probatório ao sócio ou administrador, segundo possibilita o atual artigo 373, §1º, do Código de Processo Civil de 2015 (PENTEADO; MILITELLO, 2019).
A questão que surge é a seguinte: não seria ainda mais complicada essa prova negativa de benefício do sócio ou administrador? Essa questão terá de ser alvo de muita discussão, e mesmo assim será difícil consenso e pacificação de entendimento, o que enfraquecerá a ideia de segurança jurídica na aplicação de instituto – objetivo da medida provisória.
2. §1º: A caracterização do desvio de finalidade
O parágrafo primeiro do artigo parece vir para consolidar a teoria subjetivista da desconsideração. Tal teoria foi primariamente desenvolvida pelo jurista alemão Rolf Serick e teve grande repercussão na doutrina brasileira por conta da influência deste nos escritos de Rubens Requião, que influenciou muito a concepção da teoria da desconsideração no Brasil (SAAD DINIZ, 2012). A teoria é então positivada no conceito de desvio de finalidade, trazendo a necessidade de que o abuso da pessoa jurídica não se configure somente com a não realização de uma norma ou de algum elemento do negócio jurídico; é necessário a intenção de se utilizar da personalidade jurídica com a finalidade de fraudar a lei, não cumprir obrigação contratual ou causar danos a terceiros. A legislação positivou tal teoria ao conceituar o desvio de finalidade da seguinte forma:
§ 1º Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza (grifos nossos).
3. §2: A caracterização da confusão patrimonial
Por meio da conceituação de confusão patrimonial, buscou-se positivar a teoria objetiva da desconsideração. Em conjunto com o parágrafo primeiro é possível perceber a adoção da teoria eclética da desconsideração. Importante perceber, no entanto, que enquanto nos incisos I e II tem-se critérios objetivos (falta de separação patrimonial para cumprimento de obrigações entre sócios e sociedade, e transferências sem contraprestações de ativos ou passivos), o inciso III traz o guarda-chuva “outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”, de forma a trazer certo subjetivismo para o conceito. Os artigos I, II, portanto, não podem ser considerados mais do que meros indicativos e direcionamentos para o conceito, havendo espaço para a discussão deste na doutrina e jurisprudência. Eis a redação atual:
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
A MP nº 881, portanto, optou pela teoria eclética da desconsideração da personalidade jurídica, positivando a teoria subjetiva no conceito de desvio de finalidade e a teoria objetiva no conceito de confusão patrimonial. No entanto, optou por deixar o conceito de confusão patrimonial aberto para determinados atos que contrariem a autonomia patrimonial que não previstos nos incisos I e II. Ressalta-se que mesmo no inciso III do § 2º não se trata de falar de dolo como acontece no conceito de desvio de finalidade, bastando que seja configurado ato que importe em descumprimento da autonomia patrimonial para que se configure a confusão patrimonial e, consequentemente, aplique os efeitos da desconsideração. Importante deixar claro que as hipóteses dos parágrafos 1 e 2 são alternativas, bastando a configuração de uma para a desconsideração da personalidade jurídica.
4. §§ 4º e 5º: Afastamento de determinada tendência doutrinária e jurisprudencial (grupos econômicos e finalidade)
Os parágrafos quarto e quinto tratam de um combate explícito a uma tendência de parte da doutrina e jurisprudência que consideravam a mera existência de grupo econômico causa para a desconsideração da personalidade jurídica; e outra tendência, que me parecia menor, era a configuração do desvio de finalidade ao constatar expansão ou alteração da finalidade social da personalidade jurídica. Embora a tendência geral do STJ era o entendimento que a observação de grupo econômico deveria vir junto com a caracterização da confusão patrimonial para ser aplicada a desconsideração, na prática os Tribunais flexibilizavam muito tal entendimento, de forma a aplicar a desconsideração pela mera existência do grupo econômico, decisões que por vezes eram aceitas pelo próprio STJ.
Aqui observa-se o entendimento geral do STJ:
"reconhecido o grupo econômico e verificada confusão patrimonial, é possível desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa para responder por dívidas de outra, inclusive em cumprimente de sentença, sem ofensa à coisa julgada" (AgRg no AREsp 441.465/PR, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/06/2015, DJe de 03/08/2015, grifo nosso).
No entanto, observa-se a relativação em outras decisões, como esta que desconsidera a personalidade apenas por meros “indícios” de confusão patrimonial, na prática desconsiderando apenas pela mera existência de grupo econômico, decisão confirmada pelo STJ:
[..] 3. Hipótese em que o Tribunal de origem, soberano na análise das circunstâncias fáticas e probatórias da causa, concluiu existirem elementos suficientes para a conclusão acerca da existência de grupo econômico e a consequente desconsideração da personalidade jurídica.
4. A Corte a quo consignou: "No que se refere ao reconhecimento pelo juízo a quo da formação de grupo econômico não verifico plausibilidade de direito nas alegações dos agravantes. Com efeito, a decisão impugnada não se reveste de qualquer anormalidade ou irregularidade, estando bem fundamentada, mormente no que diz com os indícios que apontam para configuração de grupo econômico, com possível confusão patrimonial entre seus membros (pessoas jurídicas e físicas), circunstâncias que autorizam a desconsideração da pessoa jurídica originalmente devedora do tributo perseguido" ((STJ - Acórdão Resp 1693633 / Rj, Relator(a): Min. Herman Benjamin, data de julgamento: 10/10/2017, data de publicação: 23/10/2017, 2ª Turma).
A nova redação que combate tal entendimento é a seguinte:
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
Estes parágrafos parecem buscar o fim da discussão desses temas e assentar um entendimento. Não pareciam estritamente necessários, pois com a nova conceituação ficou claro que tais questões não se enquadrariam a priori nos conceitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial; no entanto, optou-se por pecar pelo excesso e tentar pacificar a discussão.
5. As alterações do artigo 50 são suficientes? O problema da “teoria menor”
As alterações feitas ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica nos parecem interessantes, e, se houver abertura e boa atualização dos operadores do direito podem levar a mais segurança jurídica para empresários, o que tornará o mercado mais saudável para empreender, principalmente para pequenas e médias empresas. No entanto, principalmente para essas empresas menores, o grande problema da desconsideração da personalidade jurídica nunca foi de ordem civil/comercial, mas sim os casos de desconsideração nas esferas trabalhista e consumerista.
No ordenamento pátrio, criou-se um entendimento de que quando houvesse desigualdade entre as partes, a desconsideração seria feita em face do mero dano à parte fragilizada. Já sustentamos anteriormente (MOSIMANN, 2018) que tal teoria possui pouca fundamentação e se trata de uma quebra à evolução histórica do conceito. Tanto é, que o termo “teoria menor” nasce como uma forma de se referir a uma aplicação errônea do instituto1. No entanto, passa a ser positivada em determinados microssistemas; o caso mais evidente é o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, que após elencar diversos critérios objetivos para a possibilidade de desconsideração, em seu artigo §5º abre completamente as hipóteses, trazendo o mero dano como fonte fática da desconsideração. Conforme se vê:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
[…]
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores (grifo nosso).
Tão grande são os reflexos da aplicação da “teoria menor”, principalmente para os pequenos empresários, que chegou-se a se falar no fim da responsabilidade limitada no Brasil (SALAMA, 2014). Independente de tal retórica, é fato que o instituto da responsabilidade limitada foi tão prejudicado que perdeu sua eficácia em incentivar o empreendedorismo. Na contramão de grande parte da doutrina e jurisprudência, existem alguns poucos autores que argumentam que mesmo em casos como o do art. 28 do CDC, ainda seria necessária a avaliação de determinados requisitos, como o do dolo, para se efetivar a desconsideração (DA SILVA NETO, 2013).
Portanto, para criar um ambiente de verdadeira segurança jurídica para pequenos e médios empresários, precisaria a MP 881 criar critérios objetivos para se utilizar mesmo nos casos em que não haja igualdade de negociação entre as partes, para manter íntegro o instituto da responsabilidade limitada. Tal posicionamento não é isolado, conforme pode se ver em recente artigo publicado pelo portal JOTA:
Nesse contexto, ainda que se reconheça que as mudanças ao artigo 50 trazidas pela MP da Liberdade Econômica serão positivas nas relações entre empresários, entendemos que a MP deixou de combater a principal raiz do problema quando se fala em limitação da responsabilidade: a existência de múltiplos parâmetros de aplicação da teoria menor da desconsideração nos diversos microssistemas jurídicos e a inconsistência de interpretação das cortes sobre os limites da desconsideração (SPERCEL; LAZARINI, 2019).
Por fim, é importante ressaltar que a nova legislação será objeto de ampla discussão e sua eficácia dependerá das ações daqueles que atuam na área. É necessário fixar entendimentos, propor demandas fundamentadas e dar bom uso ao novo instrumental que traz a nova legislação, para que, no futuro, tenha-se um ganho tanto na questão de dogmática jurídica quanto em melhoria do ambiente empreendedor e de criação de riquezas.
DA SILVA NETO, Orlando Celso. Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: Grupo Gen-Editora Forense, 2013.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, v. 2: direito de empresa. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
SPERCEL; LAZARINI, 2019 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-do-machado-meyer/mp-da-liberdade-economica-e-mudancas-ao-art-50-do-codigo-civil-15072019)
PENTEADO; MILITELLO, 2019 (https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/novos-desafios-para-a-desconsideracao-da-personalidade-juridica/?amp)
SALAMA, Bruno Meyerhof, O fim da responsabilidade limitada no Brasil. História, Direito e Economia São Paulo: Malheiros e Fundação Getúlio Vargas, 2014.
STJ, RESP 279.273 – SP
____, REsp 1250582 MG
MOSIMANN, Francisco Norival. A desconsideração da personalidade jurídica em face da subcapitalização societária. TCC (graduação) - Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências Jurídicas. Direito. 2018.